terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Indígenas contestam padrões e reclamam protagonismo midiático




Comunidade Guarani Mbyá que vive na Zona Sul de São Paulo encara o desafio de assumir o papel de sujeito no campo da comunicação: por meio de diversas mídias, povos difundem as suas culturas e fortalecem as suas lutas
Por Tatiane Klein, especial para a Repórter Brasil*Exibida de forma depreciativa por uma emissora de televisão, a seqüência de imagens de um índio embriagado nunca mais saiu da cabeça de Luiz Carlos Karaí, do povo Guarani Mbyá. Ele é uma das 220 pessoas, reunidas aproximadamente em 45 famílias, que vivem na Aldeia Krukutu, em Parelheiros, Zona Sul de São Paulo. "Muitas vezes nós não deixamos mais tirar fotos nem filmar", conta o professor que se dedica ao Centro de Educação e Cultura Indígena (Ceci)




instalado no local, quando perguntado sobre a relação do seu povo com a mídia jurua (termo guarani para não-índio).
"A gente tem que ser esperto mesmo. Eles passam o dia inteiro aqui. Nós falamos horas e horas. E eles vão e criam ficções", completa o líder comunitário e escritor da aldeia Krukutu, Olívio Jekupé. Ele e Luiz Carlos mantêm a tradição da cultura oral divulgando histórias indígenas entre outros núcleos de parentes Guarani - no oguatá (caminhada) em busca da yvy marã ey (terra sem mal) - e em outros espaços como faculdades e escolas. "É um jeito de levar o nome indígena lá em cima", define Olívio Jekupé. "Antes, o índio contava a história e o branco escrevia", compara a liderança.
"A mídia só se interessa com a questão indígena quando chega dia 19 de abril ou quando o índio erra", discorre José Pires, indígena que exerce as funções de tesoureiro da Associação GuaraniNhê'Porã, que se propõe a "organizar projetos para os moradores da aldeia Krukutu". A entidade mantém um site com informações sobre a cultura guarani que reserva espaço para textos produzidos pelos próprios indígenas.
Assessora de comunicação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Priscila D. de Carvalho concorda com a prevalência de um padrão midiático que costuma pautar a questão indígena como "tema cultural" ou revestido de conotação "negativa", na linha dos "pobres índios que estão sendo massacrados". Além disso, o interesse da imprensa comercial guarda envolvimento com conflitos político-econômicos. As atenções dos meios de comunicação se voltaram para os Guarani Mbyá de Parelheiros , por exemplo, no contexto de construção do trecho sul do Rodoanel, megaobra rodoviária que interliga os principais eixos de acesso à cidade de São Paulo. Depois de intensa disputa, os indígenas conseguiram expandir as áreas que ocupam: 100 hectares para a Krukutu e outros 100 à aldeia Tenondé Porã (Barragem), terra irmã localizada nos mesmos arredores da represa Billings.
A recorrência desse padrão entre as matérias sobre índios não se justifica apenas pela corrida contra o tempo da atividade midiática. "Não se pode esperar de um jornalista outra coisa que a repetição daquilo que ouve desde criança. A idéia de evolução e de progresso. Ou seja, a meta de sair de uma origem para virar 'civilizado' é marcante no ideário de todos", explica a antropóloga Dominique Tilkin Gallois, do Núcleo de História Indígena e Indigenismo da Universidade de São Paulo (NHII/USP). No entanto, execrar o uso e a apropriação da mídia "não-índia" pelos povos indígenas seria o triunfo da negação em detrimento do diálogo. "O próprio da cultura é a transformação, não a manutenção ou a permanência", coloca Dominique.
Um dos indícios de um ato maior de violência e exclusão social consiste na ignorância a respeito da grafia antropológica do nome de uma etnia ou no desconhecimento da maneira como a própria comunidade se denomina. "É muito mais complexo que as denominações e formas de identificação, que são a parte externa, aparente desses equívocos profundos", comenta a antropóloga. Para ela, neste ponto, o importante "é não se perder em hipóteses de 'estratégias' que na verdade são construções de realizadores, ou antropólogos, ou jornalistas etc". Muitas vezes, adiciona, "o que falta verificar é se os grupos indígenas têm espaço, tempo e condições de transformar suas formas culturais segundo seus próprios interesses, padrões, ritmos e lógicas".
Internet, rádio, papel e poderOutro aspecto que atrai o interesse de jornalistas é a presença da internet, dos celulares e dos videogames na vida dos índios, normalmente colocada como contraponto às tradições indígenas.



Luiz Carlos Karaí defende o uso da internet no processo de difusão de sua cultura e de contato com outras comunidades indígenas, não apenas pelo website mantido pela Associação Guarani Nhê'Porã, mas também por mecanismos de comunicação instantânea como o MSN Messenger e o site de relacionamentos como o Orkut.
Moradores da aldeia Krukutu exibem perfis no Orkut reafirmando códigos étnico-culturais e participam de comunidades como "Educação Escolar Indígena" e "Problemas Indígenas", espaços virtuais para a ampliação da comunicação interna entre integrantes, apoiadores do movimento indígena. "Estamos no século XXI", diz Luiz Carlos, lembrando que a cultura de seu povo, assim como as outras, não está parada no tempo. Além de ensinar informática às crianças e aos jovens nas 13 estações disponíveis no Ceci, o professor pretende compartilhar as habilidades que adquiriu no curso específico sobre a manutenção de computadores.
Se a internet já faz parte da vida Guarani, outros meios de comunicação mais próximos da cultura oral indígena - e que podem favorecer o protagonismo dos povos - ainda não são muito utilizados. Apenas mais recentemente, iniciativas como o projeto Educom.rádio, desenvolvido junto ao povo Guarani-Kaiowá de Amambaí, no Mato Grosso do Sul, passaram a efetivar a capacitação técnica para a implantação de rádios comunitárias. A experiência resultou, inclusive, na produção de um programa em yopará (mistura dos idiomas Português e Guarani). Na Região Nordeste, alguns povos - como os Xukuru do Ororubá, em Pernambuco, e os Pataxó Hã-Hã-Hãe, no sul da Bahia - já contam com equipamentos próprios para a produção de material radiofônico.
As insatisfações do movimento indígena quanto à regulação da radiodifusão comunitária pela Lei 9612/98 estão condensadas no Relatório da Oficina de Áudio para os Povos Indígenas, que aconteceu de 03 a 06 de junho de 2007 na aldeia Caramuru dos Pataxó Hã-Hã-Hãe. O documento aponta a necessidade de uma legislação específica para os povos indígenas que garanta especial respeito à diversidade de suas culturas e suas estruturas internas de organização social. No tocante às críticas a limitações físicas como o raio de abrangência de apenas 1 km, por sua vez, os povos se colocam ao lado de diversos setores dos movimentos sociais na luta conjunta pelo fortalecimento das rádios comunitárias.
O meio impresso também pode dar espaço para que as comunidades indígenas atuem como sujeitos em processos de comunicação. Na própria aldeia Krukutu, livros didáticos para educação infantil em guarani que reproduzem fotografias das crianças e textos de professores do Ceci, editados em parceria com o Ministério da Educação (MEC), aguardam distribuição.
Sob orientação das lideranças comunitárias, a associação de José Pires elabora e imprime folhetos informativos que procuram valorizar o potencial turístico da região da Krukutu, a fim de dar fôlego ao tekoha (modo de vida) Guarani. O ecoturismo possibilita a aliança dos povos de outras aldeias - Tenondé Porã, Ytu e Pyau (as duas últimas, na região do Pico do Jaraguá) - desde 2001 e acaba atuando em frentes fundamentais: na luta pelas terras guaranis, dificultando a "ameaça" de posseiros que avançam na região de Parelheiros; e na garantia do sustento das famílias que, muitas vezes, dependem da venda do artesanato e da renda de programas assistenciais do governo. A atividade amplia ainda as políticas de preservação ambiental, principalmente contra a poluição da água, essencial para o tekoha Guarani. Há inclusive um programa de visitas monitoradas com palestras e apresentação do coral Kyringue Vy'Aa, Vozes das Crianças.
A chave da relação entre indígenas e mídia passa pelas próprias comunidades, na opinião de Priscila, do Cimi, organização ligada à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que publica há décadas o jornal Porantim. O próprio Olívio Jekupé, da aldeia Krukutu, já escreveu textos para o periódico mensal, que destina 400 assinaturas a comunidades e escolas. Não faltam evidências de que os papeis de protagonistas nesse processo cabem aos próprios índios, superando a figuração na imprensa comercial e utilizando as ferramentas da comunicação conforme as suas próprias demandas. Afinal, como recorda Priscila: "Comunicação é poder, é disputa de poder".
*Estudante de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Esta reportagem faz parte do Projeto Repórter do Futuro, da Oboré.

Um comentário:

Anônimo disse...

Isso mesmo Luís. Essa mídia do Brasil só fala mentira. Reproduz o tempo todo a idéia de que os índios são vagabundos que não gostam de trabalhar e que escravizam as mulheres. Além disso, sempre querem fazer parecer que os índios tem terra sobrando e outras mentiras.